Como o socialismo utópico fez a minha bisavó caiçara ter sobrenome francês

Uma colônia francesa em plena Santa Catarina, criada já no século 19 para tornar realidade o socialismo utópico, com investimento direto do império do Brasil e apoio de um coronel local interessado em ter uma serraria a vapor em suas terras: o Falanstério do Saí é a razão de a minha bisavó materna ter sobrenome francês.

Pouca gente ouviu falar no Falanstério do Saí, e não faltam razões para isso: a colônia socialista para a qual se inscreveram 2.000 europeus, e só mil foram selecionados, era uma grande picaretagem internacional – possivelmente bem intencionada, como foram várias das mais de 30 associações fourieristas estabelecidas naquele período nas Américas.

grupo de pessoas com trajes urbanos observa, do alto da colina, uma povoação de várias quadras com edificações, próximo a um rio com uma grande ponte.Litografia de Arnoult (1847) representa como seria o falanstério dos sonhos

A ideia de demonstrar a possibilidade de uma vida mais próspera e mais realizada, por meio das ideias de uma vertente do socialismo conhecida como utópica, chegou a trazer um primeiro conjunto de 100 europeus ao Brasil.

Eles acreditaram no que dizia o contrato entre o organizador da iniciativa e o Ministério dos Negócios do Império, assinado em 11 de outubro de 1841, mas ao longo do caminho, conforme iam descobrindo que muito do que foi prometido quanto a infraestrutura e quanto à organização do empreendimento eram meras intenções ou fantasias, vários foram desistindo.

Dos 100 que chegaram ao Brasil, 45 desistiram já na escala no Rio de Janeiro, antes do trecho que os traria a São Francisco do Sul, onde funcionaria o Falanstério.

Um conjunto de 55 engenheiros, marceneiros, modistas e outros profissionais mantiveram a fé (ou credulidade), e embarcaram no trecho que os trouxe do Rio a Santa Catarina. Ao desembarcarem no porto catarinense, entre 5 e 8 de janeiro de 1842, ao invés de uma utopia, eles encontraram o grande desapontamento de suas vidas: as terras da “colônia” eram uma mera demarcação na floresta tropical, ainda por desbravar.

Homem inspeciona ruína de paredes altas e grossas, tomada pela vegetação
Foto tirada em maio de 2015 mostra ruína de casa que, segundo o saber local, abrigou 3 famílias que atuaram no período do Falanstério, na Península do Saí.

Vindos da França urbanizada e industrializada, encontraram um local em que era completamente impossível desempenhar seus ofícios especializados, e onde teriam que se adaptar aos serviços rudimentares e totalmente estranhos as sua habilidades, necessários a converter um trecho de floresta em área apta a ser habitada e prover o que fosse necessário para seu sustento.

Ao saber disso, outra parte do grupo desistiu, preferindo se instalar na região do porto de São Francisco do Sul, já urbanizada – e estes retiveram alguns bens e utensílios trazidos para a colônia, tornando ainda mais difícil a possibilidade de sucesso dos demais.

Eles tentaram mesmo assim, bravamente até. Mas já no ano seguinte, em agosto de 1843, o organizador da colônia, a pretexto de ir buscar recursos, foi ao Rio de Janeiro e não voltou mais – preferindo passar a atuar como homeopata na capital do império, até ser convidado a se retirar do país por conta de suas indiscrições, e se mudar para o Egito.

Um relatório feito meses após a deserção do fundador aponta que só sobravam 17 pessoas no Falanstério do Saí (e um pouco mais que isso numa dissidência em local próximo), sem chances de recuperação de investimentos – e assim, em 1844, o Império considera encerrada a iniciativa.

Com o fim da colônia e do (magro) incentivo financeiro que os participantes recebiam, eles se dispersaram, tendo alguns se incorporado total ou parcialmente à população rural da região, outros à população urbana, outros ainda recorrendo à Sociedade de Beneficência Francesa em busca de ajuda para se relocar ou mesmo para retornar ao país de origem.

Vários dos que ficaram em SC ou no Rio incorporaram à economia local – dentro dos limites que a região comportava – os conhecimentos técnicos e profissionais que traziam do continente que deixaram para trás.

Na maior parte dos casos, os sobrenomes franceses em lápides nos cemitérios da região são o único testemunho dessa permanência – mas alguns constituíram família e se incorporaram longamente à história local.

Não foi o caso – ou ao menos não por muito tempo – do pai da minha bisavó, a Vovó Benta, típica brasileira litorânea da região em que nasceu. O pai dela, integrante de uma família abastada hoje instalada na Suiça, conseguiu obter recursos e retornou ao seu berço original, deixando por aqui apenas a linhagem que constituiu com a população local.

Seu sobrenome – que, não por coincidência, é o mesmo de uma das mais tradicionais marcas de chocolate suíço – não foi passado adiante além da segunda geração – ou seja, a geração da minha avó materna não o passou adiante, embora tenha chegado a fazer contato (por correspondência) com o ramo europeu da família.

E foi assim que o socialismo utópico de Fourier teve ao menos um fruto importante para mim: a minha própria existência!

Leia também:

  • O homem do baú - minhas memórias sobre a chegada da família do meu bisavô materno – que não fugiu de volta pra Europa e, pelo contrário, trouxe o restante da família de lá pra cá.
  • Utopia tropical - “Como a tentativa de criar um falanstério em terras brasileiras se transformou num espetáculo tragicômico”
  • Falanstério do Saí na Wikipédia.