O homem do baú

Como a implantação da eletricidade em um porto do sul do Brasil às vésperas da Primeira Guerra Mundial contribuiu para a formação da família e para guardar de forma organizada os brinquedos da minha infância.

Em 1914, o pai do meu avô veio da Europa para operar a primeira usina de energia elétrica de São Francisco do Sul, uma cidade portuária no litoral norte de Santa Catarina.

Situada no número 156 da então Rua da Liberdade (hoje Rua Marechal Deodoro), a usina posteriormente construída por ele em 1920 – como sócio fundador da Oliveira Ehrhardt & Cia. – tinha o objetivo de fornecer eletricidade para a cidade toda, e era uma continuidade da iniciativa de 1906 da Companhia Hoepcke, uma empresa florianopolitana de navegação, a princípio para prover eletricidade para suas próprias instalações junto ao porto de São Francisco do Sul.

A revolução da eletrificação interessou ao município, que ofereceu incentivos para o serviço ser prestado à população como um todo. Assim, em 1914 foi organizada a Empresa de Eletricidade Hoepcke, e, para montar a usina, foi contratado o engenheiro eletricista Frederico Ehrhardt, que acompanhou a instalação a partir da Europa, e mais tarde veio a se instalar em São Francisco do Sul para operá-la.

Foto em preto e branco de prédio e trapiches, com algumas pessoas em traje social, perfiladas, tirada a partir da Baía da BabitongaInstalações da Companhia Hoepcke em São Francisco do Sul, no início do século XX

Essa usina inicial de 1914 funcionava no prédio que desde 1992 abriga o Museu Nacional do Mar, nas então instalações da Companhia Hoepcke em frente (no sentido náutico) ao atual Porto de São Francisco do Sul. Na época, entretanto, a própria Companhia tinha trapiches junto a esse prédio, onde as suas embarcações atracavam para o embarque e desembarque de passageiros, bem como as operações de carga e descarga.

A movimentação internacional desse engenheiro importado da Europa pelos Hoepcke é especialmente importante para mim, porque foi assim que ele – meu bisavô – veio a conhecer a minha bisavó – uma jovem residente de São Francisco do Sul – para, em algum momento ao longo dos 3 anos seguintes, casarem e, em 1918, darem origem ao meu avô materno.

E o nascimento do meu avô, nesse caso, também é parte do crescimento populacional que no ano seguinte (1919), foi reconhecido como uma das causas do aumento do consumo de energia e da demanda pela iluminação elétrica. Os geradores da Hoepcke tinham chegado ao seu limite, e a empresa – cujo foco era a logística de cargas e de passageiros – não demonstrou interesse na realização de novos investimentos para ampliar a sua capacidade de geração de energia para a cidade portuária.

A prefeitura via a eletrificação como questão vital para o desenvolvimento e abriu uma concorrência pública para empresas que pudessem ampliar a eletrificação, e foi assim que entrou em cena a Oliveira Ehrhardt & Cia., em que o brasileiro Jayme Ernesto de Oliveira entrou com o capital e o engenheiro alemão Frederico Ehrhardt – que logo ficou conhecido na pequena cidade como Frederiquinho da Luz – trouxe o conhecimento técnico para ativarem sua usina.

Mas e o baú?

A instalação da usina da Oliveira Ehrhardt, em 1920, foi um sucesso e proveu eletricidade a São Francisco do Sul por décadas, até que as mudanças no mercado e nas políticas energéticas do país levaram à estatização d as atividades de geração e distribuição de energia, quando suas atividades foram absorvidas pela estatal Celesc, que continuou operando em São Francisco do Sul no mesmo prédio da Rua Marechal Deodoro até 1964.

A prosperidade e o sucesso alcançados pelo engenheiro Frederico, entretanto, não alcançavam os ramos da família dele que haviam ficado na Europa. Era o período imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, com a Alemanha derrotada e exposta às dificuldades econômicas decorrentes da sua infame aventura bélica fracassada, ampliadas pelas reparações exigidas pelo Tratado de Versalhes.

Já com raízes familiares e econômicas aqui no Novo Mundo, o sucesso do Frederiquinho da Luz oferecia aos seus irmãos e primos que sobreviveram à guerra na Europa a visão de uma alternativa. Assim, com apoio dele, ao longo da década seguinte, todos foram se organizando para vir para cá também.

Vieram em grande quantidade, vários para São Francisco do Sul diretamente, outros fazendo escala por lá a caminho de outras oportunidades no norte de SC e no Paraná e, em alguns casos cujos registros e memória não chegaram a me alcançar, até mesmo em outros países da América. As minhas memórias pessoais só alcançam a lembrança da convivência com a geração do meu avô – suas primas, nascidas no Brasil, instaladas em Joinville e em Rio Negro, no Paraná.

Bruno e Martha, os familiares mais próximos do meu bisavô, vieram num navio a vapor chamado Argentina, em 1924, quando a usina de eletricidade era um sucesso e o meu avô – também Bruno – já tinha completado 6 anos de idade.

A mala coletiva deles e de outros familiares que vieram na mesma viagem está aqui em casa - é esse baú da foto, que veio para a minha guarda quando eu ainda era criança, após passar por múltiplos outros familiares (e várias camadas de verniz):

baú de madeira com reforços em metal, em cor escura, com inscrições na tampa indicando o nome da família, a data de partida (19/6/1924), o destino do navio (Argentina) e o porto de parada (São Francisco do Sul)

Note que permanecem visíveis as marcações do despacho no navio, em 1924. A foto mostra um baú de madeira com reforços em metal, em cor escura, com inscrições na tampa indicando o nome da família, a data de partida (19/6/1924), o nome do navio (Argentina) e o porto de parada (São Francisco do Sul):

PASSAGIER GUT
Familie EHRHARDT Bigge West
Am 19.6.1924
Mit Dampfer ARGENTINA
Nach São Francisko do Sul - Sud Brasilien

Por muitos anos, esse baú serviu para guardar meus brinquedos. Hoje serve para guardar memórias, tanto no sentido físico quanto em outros, bem mais amplos

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