Autismo para não-autistas - um exemplo de como funciona para mim

É difícil explicar, no dia a dia, como é a experiência de ter autismo.

Mesmo quando se conhece os conceitos, as características como rigidez cognitiva, stimming, hiperfocos, graus de desconexão em relação às sensações etc. tendem a ser percebidas como fatores isolados, excentricidades ou esquisitices, ainda mais quando ocorrem em uma pessoa que na maior parte do tempo os mascara bem, alcançando – na visão dos outros – alta adaptação ao seu meio.

Hoje de manhã percebi em mim um exemplo de interação entre duas dessas características, que resolvi anotar pois talvez ajude a exemplificar ambas a quem não as tem mas deseja entendê-las, e apresentarei como uma soma de fatores.

  • Fator 1 - Ineficiência do link automático entre as sensações – calor, fome etc. – e as reações que elas deveriam provocar. Na prática, eu frequentemente demoro a perceber – e às vezes não percebo, ou ao menos não identifico – sensações como frio, dor, fome e sede. No momento em que chego a perceber, também noto que a manifestação física daquela sensação (por exemplo, a boca seca que manifesta a sede) estava presente há um bom tempo, mas eu não tinha “ouvido o chamado” dela.
  • Fator 2 - Rigidez cognitiva. Eu sou como uma máquina de executar tarefas planejadas. Não é uma rigidez totalmente inflexível, no meu caso: é uma determinação que inclui superar imprevistos e absorver novidades. Mas tem jeito certo e ordem certa: eu tenho uma pista certa na qual quero andar em cada trecho dos meus trajetos, uma ordem certa de fazer as rotinas matinais etc., e é muito custoso e frustrante para mim ter que executar as coisas de maneiras diferentes das planejadas.
  • Somando o Fator 1 e o Fator 2, temos as situações em que uma sensação demora a ser percebida e, ao ser percebida, demandaria uma ação que difere daquela demandada pela rigidez cognitiva - e aí eu tendo a negar duplamente (ou adiar de forma irrazoável) a reação à sensação em questão – como vestir um casaco, por exemplo.

Vamos ao exemplo prático de hoje: eu acordei com muita sede, algo que não é frequente para mim. A minha rotina matinal já inclui tomar uma garrafa de água (metade antes do exercício e metade depois), mas hoje não bastou – no fim das contas eu tomei 3 garrafas, mas vamos seguindo pela ordem:

  • Depois do exercício tomei a segunda metade da garrafa usual, e fui para o banho. Eu ainda estava com sede, mas não tinha notado.
  • Ao sair do banho, segui com os passos usuais da rotina: ferver água para o café, colocar pó no filtro, etc.
  • Quando abri a geladeira para pegar o leite para ferver, veio a percepção: estou com muita sede. IMEDIATAMENTE veio também a absorção desse fato novo, pelos mecanismos de gerenciamento que a rigidez cognitiva me permite. Tinha uma garrafa de água gelada ali à minha mão, eu estava com a geladeira aberta, mas a fechei sem pegar nada além do leite, pois a decisão automática já estava tomada: “Preciso lembrar de tomar uma água depois de terminar de tomar o café”.

Faz sentido? Racionalmente, não faz – nem mesmo pra mim. Mas esse processo não é racional, é um mecanismo de como o autismo (ou Transtorno do Espectro Autista – que não se chama Transtorno à toa) se manifesta em mim.

Eu PERCEBI que não fazia sentido adiar a água para depois do café, mas ainda assim, apesar da percepção, não modifiquei a decisão.

Segui em frente com a rotina de esquentar o leite, mas logo em seguida aconteceu algo que nem sempre acontece: a racionalidade me alcançou, e eu PERCEBI que não fazia sentido adiar a água para depois do café. Mas ainda assim, apesar da percepção, não modifiquei a decisão: apenas lamentei a incongruência, e segui em frente.

A racionalidade persistiu me avisando, como um alarme, mas a rigidez é forte, e a maneira de absorver aquela novidade já tinha sido tomada - água só depois do café. Foi aí que eu precisei parar e negociar comigo mesmo, na forma de um replanejamento: “Se eu pegar a garrafa de água enquanto o leite esquenta, e antes da água ferver, posso tomar desde já, e não atrasará nada do que tinha sido planejado”.

A negociação entre racionalidade e rigidez cognitiva foi bem-sucedida, e dei fim à sede enquanto olhava o leite aquecer, como olho todos os dias. Após, com clareza sobre como o processo tinha se desenrolado, tomei notas para lembrar de mais tarde escrever este texto, porque percebi uma oportunidade não apenas de comunicar isso a quem convive com autistas, mas também de eu me entender um pouco melhor e talvez vencer mais um degrau na minha própria luta contra a rigidez quando ela me atrapalha.


Nota: Fica para uma oportunidade futura um possível texto complementar fazendo a conexão entre o relato acima e outro comportamento que o TEA me traz: o hiperfoco, que não me deixou dar atenção a mais nada enquanto eu não escrevesse este texto, apesar de eu ter decidido que só o escreveria à tarde.